Dia
desses, um amigo, gay, desabafou: “Essa semana fiquei revoltado. Porque achei
uma puta ‘falta de sacanagem’ eu ter que falar pras pessoas que eu gosto de
homem. Eu não devia ter que falar isso. As pessoas não deviam ter que saber,
apenas aceitar e foda-se, sabe?”. Um detalhe irônico: Esse amigo sempre esteve
aleatório ao mundo, as far as possible, até que o calo apertado foi o dele. Mas
isso não só não deslegitima sua indignação, como mostra algo sintomático da
nossa sociedade e mais frequente do que eu desejaria. Eu, apenas uma grande adepta
do “antes tarde do que mais tarde ainda”.
Isso
parece clichê, e é, mas se você, caro interlocutor, não se encontra em nenhum
tipo de “minoria”, pode ter alguma dificuldade em entender o que to dizendo. E,
só pra deixar claro, isso não é pretexto e nem generalização. Fato é que ser
homem, branco, classe média, cis e hetero, na nossa sociedade, facilita as
coisas. É, as atribuições são tão bizarras quanto os títulos de realeza.
E
esse é meu ponto: a necessidade que se impõe de estabelecer atribuições para
nos definir. O desabafo do meu amigo me trouxe à mente algo que eu já tinha
notado, mas nunca formulado de maneira tão clara. A verdade é que eu passo
tanto tempo tendo que explicar às pessoas meus olhares do mundo, e poucas vezes
elas realmente entendem, que nem me dei conta do quão desnecessário isso é,
simplesmente porque não tem implicações na vida de ninguém que não a minha.
Pra
ser clara: meu amigo gostar ou não de homem, não altera uma vírgula na minha
vida sexual, pessoal, profissional etc etc etc. Peço licença a um grande ícone.
I have a dream, eu realmente tenho. Tenho esperanças de viver em uma sociedade
na qual as pessoas se dêem conta de que alguém que seja homossexual, trans,
negr_, que transe, que não acredita no Deus cristão, que não goste de
trabalhar, que aborte ou plante sua maconha, não afeta em nada (pasmem!) a vida
daqueles que pensam diferente. Tenho mais esperança ainda que as pessoas
entendam que defender a liberdade dessas e outras práticas não implica
n-e-c-e-s-s-a-r-i-a-m-e-n-t-e praticá-las. Significa não mais que entender que
isso não afeta a vida do todo.
Como
adepta da psicanálise de buteco, acredito que aquilo que mais nos incomoda é o
que nos reflete de alguma forma. Quantas vezes não ouvimos as pessoas nos
dizerem como devemos nos relacionar, sem ter um relacionamento “bem sucedido”? (A
propósito, o que é sucesso?) E quant_s não reclamam em tempo integral do seu
trabalho, mas são os primeiros a execrar quem não trabalha? E aqueles, que
seguem a doutrina cujo mestre se interpôs ao apedrejamento de uma prostituta,
mas estigmatizam os que não têm outra opção senão vender seu corpo para
sobreviver?
A
demagogia não existe por si só, ela existe porque a inventamos, como tantas
outras coisas. Qual seria a necessidade de inventar qualquer coisa e combater
determinadas práticas, se já não praticássemos? Qual seria o sentido de
combater o ódio se tod_s amássemos? Foucault e Edi Rock disseram coisas que levam
a raciocínios muito próximos, vive-se de guerra muito mais que de paz.
Sobretudo se temos a percepção de que um conceito só pode ser criado a partir
de seu par opositor. I have a dream também, Martin. Imagina como seria o mundo
sem demagogia? Imagine, Lennon.
Uma
amiga, bem mais entendida em psicanálise do que eu, sempre me diz: não temos o
poder de mudar ninguém que não nós mesmos. Eu, por mim mesma: aquela sem luz*, muito mais aluna da vida do
que juíza. Pois é, aquela aluna chata que só faz perguntas. É, Martin, 52 anos
se passaram e ainda não aprendemos a praticar mais do que apenas falar,
inclusive e principalmente o amor. Aliás, 2015 anos depois que você morreu
pelos pecados, JC, e ainda não partilhamos o pão, agora “ensinamos a pescar”. I
have a dream, um sonho sem pedras, mas fica pra depois de amanhã.
*Aluno:
a = prefixo de negação; luno = luz. Aluno = sem luz.
Muito bom ... Ser ou ser ... Essa é a questão ...
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