quarta-feira, 22 de julho de 2015

Em algum momento depois de amanhã

Dia desses, um amigo, gay, desabafou: “Essa semana fiquei revoltado. Porque achei uma puta ‘falta de sacanagem’ eu ter que falar pras pessoas que eu gosto de homem. Eu não devia ter que falar isso. As pessoas não deviam ter que saber, apenas aceitar e foda-se, sabe?”. Um detalhe irônico: Esse amigo sempre esteve aleatório ao mundo, as far as possible, até que o calo apertado foi o dele. Mas isso não só não deslegitima sua indignação, como mostra algo sintomático da nossa sociedade e mais frequente do que eu desejaria. Eu, apenas uma grande adepta do “antes tarde do que mais tarde ainda”.

Isso parece clichê, e é, mas se você, caro interlocutor, não se encontra em nenhum tipo de “minoria”, pode ter alguma dificuldade em entender o que to dizendo. E, só pra deixar claro, isso não é pretexto e nem generalização. Fato é que ser homem, branco, classe média, cis e hetero, na nossa sociedade, facilita as coisas. É, as atribuições são tão bizarras quanto os títulos de realeza.

E esse é meu ponto: a necessidade que se impõe de estabelecer atribuições para nos definir. O desabafo do meu amigo me trouxe à mente algo que eu já tinha notado, mas nunca formulado de maneira tão clara. A verdade é que eu passo tanto tempo tendo que explicar às pessoas meus olhares do mundo, e poucas vezes elas realmente entendem, que nem me dei conta do quão desnecessário isso é, simplesmente porque não tem implicações na vida de ninguém que não a minha.

Pra ser clara: meu amigo gostar ou não de homem, não altera uma vírgula na minha vida sexual, pessoal, profissional etc etc etc. Peço licença a um grande ícone. I have a dream, eu realmente tenho. Tenho esperanças de viver em uma sociedade na qual as pessoas se dêem conta de que alguém que seja homossexual, trans, negr_, que transe, que não acredita no Deus cristão, que não goste de trabalhar, que aborte ou plante sua maconha, não afeta em nada (pasmem!) a vida daqueles que pensam diferente. Tenho mais esperança ainda que as pessoas entendam que defender a liberdade dessas e outras práticas não implica n-e-c-e-s-s-a-r-i-a-m-e-n-t-e praticá-las. Significa não mais que entender que isso não afeta a vida do todo.

Como adepta da psicanálise de buteco, acredito que aquilo que mais nos incomoda é o que nos reflete de alguma forma. Quantas vezes não ouvimos as pessoas nos dizerem como devemos nos relacionar, sem ter um relacionamento “bem sucedido”? (A propósito, o que é sucesso?) E quant_s não reclamam em tempo integral do seu trabalho, mas são os primeiros a execrar quem não trabalha? E aqueles, que seguem a doutrina cujo mestre se interpôs ao apedrejamento de uma prostituta, mas estigmatizam os que não têm outra opção senão vender seu corpo para sobreviver?

A demagogia não existe por si só, ela existe porque a inventamos, como tantas outras coisas. Qual seria a necessidade de inventar qualquer coisa e combater determinadas práticas, se já não praticássemos? Qual seria o sentido de combater o ódio se tod_s amássemos? Foucault e Edi Rock disseram coisas que levam a raciocínios muito próximos, vive-se de guerra muito mais que de paz. Sobretudo se temos a percepção de que um conceito só pode ser criado a partir de seu par opositor. I have a dream também, Martin. Imagina como seria o mundo sem demagogia? Imagine, Lennon.

Uma amiga, bem mais entendida em psicanálise do que eu, sempre me diz: não temos o poder de mudar ninguém que não nós mesmos. Eu, por mim mesma: aquela sem luz*, muito mais aluna da vida do que juíza. Pois é, aquela aluna chata que só faz perguntas. É, Martin, 52 anos se passaram e ainda não aprendemos a praticar mais do que apenas falar, inclusive e principalmente o amor. Aliás, 2015 anos depois que você morreu pelos pecados, JC, e ainda não partilhamos o pão, agora “ensinamos a pescar”. I have a dream, um sonho sem pedras, mas fica pra depois de amanhã.


*Aluno: a = prefixo de negação; luno = luz. Aluno = sem luz.

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