quarta-feira, 29 de julho de 2015

O lado de lá eu vou ver quando chegar

Nada contra Deus. E nada contra os ateus. Mas nunca é demais retomar Hamlet – há mais coisas entre o céu e a terra. E, contudo, as próximas linhas serão dedicadas a esse assunto, de modo definitivo. Eu sei, é claro, que esse tema é daqueles-que-não-podem-ser-falados. Como sei, igualmente, que isso não deveria importar para mais ninguém que não a mim. O fato é que ele, o assunto, não é tão importante. Nem Ele, eventualmente. É paradoxal. Eu adoro paradoxos. E adoro também crianças, adoro a sinceridade que elas têm. As crianças têm sempre as perguntas mais profundas, as que exigem as respostas mais elaboradas.

Certa vez algumas crianças com que trabalho me perguntaram se eu acreditava em Deus. Eu disse que não. Elas ficaram um pouco surpresas e eu expliquei: “Eu acordo às 6h da manhã pra vir até aqui, ajudar vocês, sem ganhar 1 centavo. Não acreditar em Deus me faz alguém melhor ou pior?”. A resposta talvez vocês já saibam. Uma delas concluiu, então, que eu era ateia. Para fins explicativos, eu confirmei. Mas devo dizer que esse termo ~não me representa~.

A minha antropologia de buteco me ensinou que o que nos faz seres humanos não é somente a razão em si, mas a nossa subjetividade. Morin nos mostra que a era do grande cérebro, o marco do homo sapiens-demens, começa justamente com a sepultura, naquele momento, o homem passa a denotar certa espiritualidade, a perceber o duplo e a distinguir a vida da morte. Passa a ter, em sua consciência, as noções de transformação e de tempo. O homem passa a entender a ideia de finitude. Certa vez, um amigo que entende bem mais de Antropologia que eu, me disse algo interessante: quem acredita, não acredita completamente, e quem não acredita, não desacredita completamente. Pra mim, isso é a síntese da subjetividade humana, cuja característica elementar é a incerteza.

Em outras palavras, não acredito que o ser humano esteja isento de espiritualidade, seja ela entendida como for. Mas por que isso não é tão importante ao mesmo tempo em que é a questão de maior importância para qualquer ser humano? Porque pensar na morte, e o que pode existir depois, é uma questão tão coerente quanto pensar no que vou almoçar amanhã sem nem ter almoçado hoje ainda. É claro que não podemos ter todas as respostas, mas creio que elaborar as perguntas é ainda o mais importante. No fundo, acho que certo tipo de religiosidade é um eco do nosso ego, que teme o esquecimento. Se isentar de religiosidades não significa que a vida perdeu o sentido, mas, antes, que ela tem um significado ainda maior.

A grande convicção dos sem-convicções é a necessidade de fazer cada oportunidade valer a pena, aproveitar cada possibilidade e entender que a única certeza que temos é essa vida e a certeza ainda maior é que ela pode acabar a qualquer instante, portanto, não dá pra perder tempo com o que não tem remédio. Sempre ouço coisas do tipo: “quero ver o dia que você encontrar com Deus...”. Bom, se eu encontrar com ele, a gente vai trocar uma ideia muito interessante.

Pois é, em várias circunstâncias me pego desejando estar enganada, esperando chegar o momento do “juízo final” e encontrar Deus (um ser que poderia muito bem ser uma trans ou uma entidade das tribos polinésias) sentad_ numa nuvem branca. Se isso acontecer, ele poderá puxar pela minha ficha que, sendo assim, sendo Rayssa, dei menos trabalho pra ele com as minhas banalidades. Também não é muito improvável que eu tenha seguido mais “fielmente” alguns preceitos do que muitos “fiéis”, mesmo sem intenção; e, ainda por cima, considerei que ele não seria onipresente, portanto, tanto quanto pude, procurei pessoalmente estar presente onde ele parecia estar ausente. Por coincidência, em lugares onde as pessoas clamavam muito por ele. No final, acho que El_ vai me entender.

domingo, 26 de julho de 2015

Utopia do amor

A gente cansa de ver nos noticiários, redes sociais e banheiros da vida vários embates a respeito de diferenças políticas, religiosas e tudo o mais. Vários tabus. Mas, na minha nada humilde opinião, existe um tabu que está acima da nossa vã compreensão e que simplesmente não sabemos como encarar: o amor.

Sim, falar de amor é o clichê mais tabu que existe. Ou o tabu mais clichê, tanto faz. O amor é tipo “nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”. O amor. Como a maioria das coisas que lidamos no dia-a-dia, o amor virou isso, virou coisa. E, na era dos avatares digitais, o amor não pode simplesmente ser o fogo-que-arde-sem-se-ver, ele tem que existir materialmente, ser registrado e postado no maior número de redes sociais possível.

Ok, esse papo vai longe e minha finalidade, por ora, não é essa. Eu acho a incompletude humana incrível; a incerteza, fundamental. Mas parece que estamos obstinados a sempre exteriorizar tudo o que fazemos, somos e sentimos, como que pra dizer para nós mesmos: “se eu falhar, tá de boa, aquilo era inatingível mesmo”. Digo isso porque sou defensora de certo pragmatismo. Esse papo de se auto-enganar para se auto-afirmar, pra mim, é auto-flagelo.

Sejamos minimamente práticos, então. Sentimentos são processos mentais, sim, como também são fisiológicos. Eu não me atreverei a enveredar pela biologia, matéria que nunca foi das minhas favoritas, mas a Ocitocina, por exemplo, é um hormônio muitas vezes chamado de “hormônio do amor”. O amor pode ser várias coisas. E ninguém é só amor. A psicanálise diria que somos metade amor, metade ódio. O mano do platos grande, Platão, nos apresentou 3 formas de amor, Eros, Ágape e Filia. Amor pode ser tudo, mas insistimos que seja nada. Ou quase nada.

É, eu acho que a nossa cultura supervaloriza um “amor ideal”. O resultado: passamos a vida à procura disso e não aproveitamos os “pedaços de amor” que aparecem no meio do caminho. É tipo a busca pela tal da felicidade, outra coisa que dizem que existe por si só, tipo pote de ouro no final do arco-íris. Não nascemos amando, aprendemos a amar. Ou deveríamos. Mas parece que passamos a vida nos esquivando do amor, pensando evitar o inevitável, o sofrimento. Poderíamos descobrir o amor em pequenas paixões e amá-las mais do que evita-las. Poderíamos realmente desfrutar o amor de um bichinho de estimação e estimá-los como parte de nós, não tratá-los como coisa. Poderíamos amar mais as pessoas e entender que elas são como nós, passíveis de erros, ao invés de julgar toda a humanidade por todos os erros, inclusive os nossos.

Sei lá, quando eu era pequena, toda vez que ganhava um presente novo, fosse roupa, fosse brinquedo, fosse o que fosse, eu dava um beijo, como que para expressar minha gratidão. Eu cresci e me tornei menos materialista, porém, menos grata com aquilo me faz bem. As ciências sociais me ensinaram que precisamos de ordem para viver em sociedade e uma das formas de fazermos isso é codificando várias coisas, inclusive os comportamentos. É como se houvessem regras para dizer se algo é ou não socialmente aceito. Pelo menos sempre entendi assim e sempre achei um problema.

Não entendo o porquê de as pessoas gostarem de definir quais as formas de amar, sem, muitas vezes, terem definido as suas próprias formas de amor. Talvez eu seja imatura demais para isso. Mas, cá entre nós, sempre achei a vida adulta um porre e ninguém discorda que as crianças são muito mais pró na arte de amar. Porque ninguém as ensinou a “desamar”.

Assim, para não desamar, desconstruamos o amor. O amor-tradicional, o amor-cinderela, o amor-heteronormativo, o amor-machista, o amor-monogâmico, o amor-possessivo. Desconstruamos o amor-utopia. Eu sou uma defensora das utopias, mas a utopia do amor nos cega frente aos demais amores, aos amores imperfeitos.

É Carlos*, esse anjo que te mandou ser gauche na vida, também me encontrou. E me fez como ele, torta. Mas, meu caro Carlos, no meio do caminho sempre tem alguma coisa. Eu, gauche que sou, escolhi ressignificar o amor, construir do meu jeito, mas não sem a ajuda dele. Ele, que de tão ele, merece mais do que palavras clichês de amor-utopia. Ele mesmo, que merece que eu sinta mais do que fale. Sim, ele, que é a linha reta, enquanto eu sou um ponto que errou a curva. Mas ele, que tá ok com isso. Ele que, mais novo que eu, não aprendeu a desamar e ainda embarcou na minha viagem de desconstrução do amor. Ele que, não contente, ainda me levou de volta à infância só pra tirar as teias daquela gratidão que eu possuía outrora. Ele, que sabe que eu tô falando dele.

*Referência aos poemas de Carlos Drummond de Andrade, Poema de Sete Faces No Meio do Caminho.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Em algum momento depois de amanhã

Dia desses, um amigo, gay, desabafou: “Essa semana fiquei revoltado. Porque achei uma puta ‘falta de sacanagem’ eu ter que falar pras pessoas que eu gosto de homem. Eu não devia ter que falar isso. As pessoas não deviam ter que saber, apenas aceitar e foda-se, sabe?”. Um detalhe irônico: Esse amigo sempre esteve aleatório ao mundo, as far as possible, até que o calo apertado foi o dele. Mas isso não só não deslegitima sua indignação, como mostra algo sintomático da nossa sociedade e mais frequente do que eu desejaria. Eu, apenas uma grande adepta do “antes tarde do que mais tarde ainda”.

Isso parece clichê, e é, mas se você, caro interlocutor, não se encontra em nenhum tipo de “minoria”, pode ter alguma dificuldade em entender o que to dizendo. E, só pra deixar claro, isso não é pretexto e nem generalização. Fato é que ser homem, branco, classe média, cis e hetero, na nossa sociedade, facilita as coisas. É, as atribuições são tão bizarras quanto os títulos de realeza.

E esse é meu ponto: a necessidade que se impõe de estabelecer atribuições para nos definir. O desabafo do meu amigo me trouxe à mente algo que eu já tinha notado, mas nunca formulado de maneira tão clara. A verdade é que eu passo tanto tempo tendo que explicar às pessoas meus olhares do mundo, e poucas vezes elas realmente entendem, que nem me dei conta do quão desnecessário isso é, simplesmente porque não tem implicações na vida de ninguém que não a minha.

Pra ser clara: meu amigo gostar ou não de homem, não altera uma vírgula na minha vida sexual, pessoal, profissional etc etc etc. Peço licença a um grande ícone. I have a dream, eu realmente tenho. Tenho esperanças de viver em uma sociedade na qual as pessoas se dêem conta de que alguém que seja homossexual, trans, negr_, que transe, que não acredita no Deus cristão, que não goste de trabalhar, que aborte ou plante sua maconha, não afeta em nada (pasmem!) a vida daqueles que pensam diferente. Tenho mais esperança ainda que as pessoas entendam que defender a liberdade dessas e outras práticas não implica n-e-c-e-s-s-a-r-i-a-m-e-n-t-e praticá-las. Significa não mais que entender que isso não afeta a vida do todo.

Como adepta da psicanálise de buteco, acredito que aquilo que mais nos incomoda é o que nos reflete de alguma forma. Quantas vezes não ouvimos as pessoas nos dizerem como devemos nos relacionar, sem ter um relacionamento “bem sucedido”? (A propósito, o que é sucesso?) E quant_s não reclamam em tempo integral do seu trabalho, mas são os primeiros a execrar quem não trabalha? E aqueles, que seguem a doutrina cujo mestre se interpôs ao apedrejamento de uma prostituta, mas estigmatizam os que não têm outra opção senão vender seu corpo para sobreviver?

A demagogia não existe por si só, ela existe porque a inventamos, como tantas outras coisas. Qual seria a necessidade de inventar qualquer coisa e combater determinadas práticas, se já não praticássemos? Qual seria o sentido de combater o ódio se tod_s amássemos? Foucault e Edi Rock disseram coisas que levam a raciocínios muito próximos, vive-se de guerra muito mais que de paz. Sobretudo se temos a percepção de que um conceito só pode ser criado a partir de seu par opositor. I have a dream também, Martin. Imagina como seria o mundo sem demagogia? Imagine, Lennon.

Uma amiga, bem mais entendida em psicanálise do que eu, sempre me diz: não temos o poder de mudar ninguém que não nós mesmos. Eu, por mim mesma: aquela sem luz*, muito mais aluna da vida do que juíza. Pois é, aquela aluna chata que só faz perguntas. É, Martin, 52 anos se passaram e ainda não aprendemos a praticar mais do que apenas falar, inclusive e principalmente o amor. Aliás, 2015 anos depois que você morreu pelos pecados, JC, e ainda não partilhamos o pão, agora “ensinamos a pescar”. I have a dream, um sonho sem pedras, mas fica pra depois de amanhã.


*Aluno: a = prefixo de negação; luno = luz. Aluno = sem luz.

domingo, 19 de julho de 2015

Manifesto à literalidade

Manifesto à literalidade. Eu sei, o termo soa estranho, mas eu verifiquei. E se não existisse, eu me permitiria esse neologismo. E vou começar com um desabafo. Se tem uma coisa que me irrita no mundo (e, na verdade, têm várias coisas), é o desuso do sentido literal. Só aceito a substituição do uso do sentido literal pelo uso do sarcasmo, porque sarcasmo (ironia inclusa) é um excelente recurso expressivo, embora cada vez menos compreendido. Se também cair em desuso, parem o mundo pra eu descer.

E, que fique claro, sou uma defensora do uso de variados recursos linguísticos, como analogias, alegorias e metáforas, que, em muitos casos, soam mais interessantes, mas, cotidianamente, são igualmente pouco utilizados e ainda menos compreendidos que o sarcasmo.

Meu apelo é, por assim dizer, mais literal. “Será que fulan_ vai entender x, se eu disser y?” – Não. Fulan_ só vai entender x se você disser x. A qualidade literal anda paripassu com a sinceridade. E, convenhamos, a nossa afinidade com pessoas sinceras é diretamente proporcional a nossa hipocrisia quando dizemos que adoramos sinceridade, mas ficamos mais felizes em ouvir aquilo que queremos. Minhas sinceras desculpas, mas não entra na minha cabeça o porquê de as pessoas fazerem determinadas perguntas se não aguentam as respostas diretas, cravadas e claras.

Literalidade podia mudar de nome. Literaridade. É isso, esse termo só podia derivar neologismos. E é claro (ou será que não é?), dizer algo l-i-t-e-r-a-l-m-e-n-t-e pressupõe que o entendimento de seu significado seja óbvio e, no entanto, obviedade é uma questão de referencial. Ou seja, o que é óbvio para alguém depende do seu contexto, de sua bagagem, então pode não ser óbvio para outrem. Meu professor de filosofia costumava usar o seguinte jargão: o óbvio é, quase sempre, o mais difícil de enxergar.

Eu, particularmente, entendo isso literalmente. Sobretudo quando me obrigam a resolver um problema de lógica, porque problemas de lógica são extremamente traiçoeiros. Se você não mata a charada logo de cara, é pouco provável que resolverá a questão quebrando a cabeça. E isso tudo é tão polêmico que o nosso mano Aristóteles já se propunha à discussão, mostrando que a lógica seria um elemento ligado ao pensamento, em que, de alguma forma, a análise causal da construção de um raciocínio poderia levar à verificação da veracidade do mesmo. É por aí e é confuso mesmo, senão não seria filosofia.

Um exemplo disso: o tal de silogismo. E eu vou exemplificar o exemplo. Todo mundo já ouviu uma vez na vida algo do tipo: “Disseram-me que sou ninguém. Ninguém é perfeito. Logo, eu sou perfeito. Mas só Deus é perfeito. Então eu sou Deus”. Pronto, nada mais literal e lógico que esse tipo de raciocínio.

Fato é que a literalidade entrou em extinção em algum momento da história da humanidade. E relativizaram tanto o ~sentido literal~ que ele acabou, literalmente, sem sentido. Então várias vezes eu ouço desabafos de amig_s que começam, precisamente, com o seguinte postulado: “O que fulan_ quis dizer quando disse...?”. E essa pergunta é duplamente problemática quando atentamos à cultura do estupro que vivemos em uma sociedade ainda muito machista. Para exemplificar sob esse outro viés, fica aqui o meu humilde apelo a um neo(si)logismo aristotélico: x convidou y para sair; y disse não; então y quis dizer, literalmente, não.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

O que você vê primeiro nessa imagem?

O perfil do rosto de um homem calvo ou um casal de camponeses? Por que as vezes dizemos uma coisa quando, na verdade, queremos dizer outra? Domingo eu compartilho o que penso disso (:

quarta-feira, 15 de julho de 2015

De volta ao chão*

Meio sem saber como e quando, comecei a me interessar muito por crônicas. Passei a lê-las aos montes e, de tão saborosas, me peguei querendo arriscar umas breves linhas. O problema se deu justamente quando quis parar e escrever. “É crise do processo criativo”, me disse um sujeito muito mais ousado e aventureiro do que eu, sobretudo no quesito escrita. “E só se resolve escrevendo”. Assim até parece simples.

Um segundo problema. Sempre ouvi dizerem que a inspiração pode vir fortuitamente. Certa vez, em uma entrevista, Criolo a definiu da seguinte forma: “as vezes ela vem num belo vestido, as vezes ela vem espancada, as vezes ela vem com uma faca pra te cortar, mas ela sempre vem”. Ok, então ela sempre vem. Mas ainda havia um terceiro problema.

A questão é que nem sempre se tem um aparato digital, facilitador, à mão. E com bateria, esse detalhe é importantíssimo. É claro que, qualquer um que goste de escrever, dificilmente sai à rua sem um caderninho na mochila. Isso também é regra para quem é tiete. Todo mundo que cogita a possibilidade de encontrar alguém famos_ na rua, tem sempre um papel e uma caneta para um autógrafo. Sim, isso é um desabafo. Eu não poderia saber disso tão bem se não fosse uma tiete confessa, so sorry. O que reforça a necessidade que eu, pessoalmente, tenho de sempre estar de posse de um caderninho.

Ocorre que escrever é um processo lento. Vêm à mente um conjunto sem-fim de ideias e, no entanto, existe uma limitação física para transcrevê-las. Para mim, o principal fator limitador é, muitas vezes, a preguiça. So, so sorry. Mas, pensando bem, nem me sinto tão mal por isso. Antes de mim (claro, qual o sentido de pensar algo antes de qualquer outra pessoa?), Machado escrevera em um folhetim, a prévia da crônica, justamente um desabafo dizendo que o grande fardo do folhetinista era o dia de escrever. Hoje, mais de 100 anos depois, sabemos quem Machado é e, para muitos, ele foi o próprio precursor da crônica.

Tudo bem, ele é Machado de Assis. Eu... Quem sou eu, mesmo? E, apesar de Antonio Candido nos dar a “fórmula da crônica”, devo dizer que, de fato, isso é pra poucos. E desde já peço desculpas, não mais somente ao meu caro leitor, como também aos grandes cronistas, pela vã pretensão de cronicizar o ato de escrever e, sobretudo, pela própria ambição de escrever crônicas. Escrever é uma benção e um estigma. E por falar em benção e estigma, nem aquele brother cabeludo, barbudo, metido à paz e amor, vulgo JC, agradou a tod_s, se eu não to enganada.

A mim, nada resta. Nem engavetar esse texto, uma vez que a escrita perdeu quase completamente o requinte de ver seus papéis acabarem corroídos por traças em uma velha gaveta. Neste caso, talvez reste um arquivo em word, salvo em uma “nova pasta” de uma área de trabalho cheia de coisas esquecidas, inclusive crônicas.


Crônica que, humildemente, se coloca como um gênero descartável, breve, sempre escondendo (ou fingindo esconder) sua real profundidade. Será uma falsa modéstia? Eu, ao pensar escrever crônicas, certamente não sou falsa e, definitivamente, nem um pouco modesta. Desisto. Escrever algo breve, engraçado, simples, mas profundo, com um turbilhão de pensamentos paralelos a respeito e a mão há muito já não acompanhando... ~suspiro~. Melhor seria descer do patamar da crônica e voltar ao rés do chão. 


*Referência ao texto de Antonio Candido, A vida ao rés do chão, que estabelece uma análise crítica do gênero crônica. O texto não é facilmente encontrado online, mas posso disponibilizá-lo aos interessados.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Quem sonha um sonho, conta um conto de si mesmo

Esperar é como escrever. Nunca tá bom, nunca é bom. O tempo adquire lógica própria e, no final, o que resta é impaciência. 21:36. Começo a pensar sobre sonhos. Justamente porque o sonho nos mostra uma realidade paralela. Será paralela mesmo? Nada, absolutamente nada, nos prova que estamos acordados e, nos sonhos, os eventos têm seu próprio ordenamento. Inclusive de tempo e espaço. Não é possível delimitar tempo e espaço nos sonhos. 21:39. Nem cor. Alguém sabe me dizer em que cor sonha? Eu, se sei, esqueci assim que acordei, junto a inúmeros sonhos.

Como escrever, sonhar pode ser constrangedor. Eu, especialista em generalidades, sou também expert em sonhos. Pelo que sei do que disse um cara aí, também metido a explicar tudo, Freud, o sonho é a representação dos nossos desejos mais íntimos, normalmente reprimidos pela moralidade social. O sonho é a essência do nosso inconsciente e apenas nós somos capazes de interpretá-los. Só de pensar nos meus textos e nos meus sonhos,  igualmente nas minhas interpretações dos mesmos, tenho vergonha. Afora a sensação de incompletude, seja escrevendo, seja sonhando, essa também me é velha conhecida. Principalmente quando acordo, aí tudo parece incompleto e a vida, por si só, perde a cor. Mas, exatamente como nos acontecimentos de um sonho, essa angústia passa.

21:42. E assim também passam as ideias. De repente pensei em escrever algo e já esqueci. E o tempo tá passando (esse não para de passar). Esperar, de repente, pode nem ser tão ruim. Em poucos minutos desse tempo cronológico, uma infinidade de ideias afloram. E, ao mesmo tempo, é como correr contra o próprio, o tempo. Afinal, é como se a caneta é que corresse de mim, ao não ser capaz de registrar ideias na mesma velocidade com que as penso.

Se bem que a própria linguagem permite uma brincadeira com o tempo quando-usamos-determinados-elementos-como-artifício-de-escrita. Já a (i)materialidade das palavras, essa parece ser a própria metáfora das ideias. E a contagem do tempo parou. Fato é que as ideias estão sempre em descompasso com a escrita. O mesmo descompasso entre o tempo dos sonhos e o tempo da narrativa que criamos dos sonhos. E, voilá, faz-se luz! As ideias estão para o sonho assim como a escrita está para a narrativa do sonho.


Quando contamos um sonho, nada mais fazemos do que ordenar cretinamente os acontecimentos que vivenciamos em uma dimensão paralela, para dar algum sentido ao que é inexplicável. Escrever é, portanto, a tentativa chula, disfarçada de nobre, de ordenar ideias e dar a elas algum sentido. Mesmo quando elas não fazem sentido algum nem para quem as pensa. E quando é que as palavras podem traduzir de maneira fidedigna um sonho, sem prejuízo de interpretação? E a contagem das horas, quando é que vai atribuir, de fato, algum sentido ao tempo? 00:41. Talvez eu já tenha passado da hora e esteja sonhando acordada um (des)ordenamento de ideias.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Um pouco de Sophia, muito de Capitu

“Tudo era matéria às curiosidades de Capitu” – foi o que me veio à cabeça quando pensei em um tema para esse texto. “Eu sou um tema vivo”, disse uma amiga quando eu pedi sugestões temáticas. Qual a ligação entre as duas citações, separadas em mais de 1 século no tempo? Bom, só para constar, devo dizer que sempre invejei Capitu e seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Mas o mais importante aqui é que, se tudo pode ser matéria às curiosidades d_s curios_s, então tudo pode ser um tema. E se todos os temas forem bem escritos, então podem igualmente despertar curiosidades.

Essa afirmação é tão óbvia quanto presunçosa. Óbvio é também o fato de que dificilmente se encontrará alguém apto a falar de todas as coisas e, afinal, there are more things in heaven and earth than are dreamt of in your philosophy* (o mesmo Hamlet citado pelo próprio Machado, em A Cartomante. Eu, claro, uns cento e tantos anos atrasada). Mas se não há pessoa apta a falar de todas as coisas quanto possível, certamente há alguém pretensios_ o suficiente para desempenhar tal tarefa. Provavelmente não um, mas inúmeros. Eis-me aqui.

Talvez se trate apenas de ser (ou não ser?), aquel_ que melhor vende uma ideia – ou várias. Vender porque convencer alguém a ler determinado texto também é uma questão de marketing (haters gonna hate). Trata-se do uso de uma linguagem sofisticada, muitas vezes, e sofisticação tem origem em sofisma. Na definição da minha vã filosofia, os sofistas, pré-socráticos, são muito mais bons oradores do que praticantes de uma “verdadeira” filosofia.

Pois bem, talvez o meu caro interlocutor esteja perante uma sofista, em relação às práticas filosófica e literária. Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra de Deus. Peço licença bíblica para postular o seguinte: no capitalismo, vive o homem de pão mais do que de palavras. O que nos leva realmente a crer que existe muito mais no céu e na terra, e entre eles, Cronos.

Escrever é isso. Filosofia é isso. Só percebemos que estamos no caminho certo, quanto mais dúvidas temos, porque, felizmente, um dia alguém postulou (se é que de fato postulou) que só sabemos que nada sabemos. E foi esse o motivo deste texto ser escolhido para a apresentação do blog. Porque sobra pretensão e falta sensatez. Sobram temas e faltam especialidades. Porque o caminho se constrói enquanto caminhamos. Assim sendo, todos os caminhos podem ser certos e o erro vira uma questão a ser debatida pelos ~relativos~. Será, então, que voltamos a Protágoras para dizer que o homem é a medida de todas as coisas? Não sei, é só o que consigo afirmar. 


*Tradução livre: Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Existem inúmeras traduções possíveis, escolhi a que acredito expressar melhor a ideia. Em A Cartomante, Machado utiliza há mais cousas no céu e na terra do que sonha nossa filosofia.